sexta-feira, julho 02, 2010

O maltrapilho que sabia ler

Estou entre o pessoal que agora desatou a reler Saramago só porque o homem morreu. Mas não comprei nenhum livro dele, aproveitei um dos que já tinha lá para casa e que os meus pais adquiriram. Optei por aquele que marca o início da carreira a sério de Saramago, Levantado do Chão, onde fala da vida dos trabalhadores rurais da aldeia alentejana de Lavre na primeira metade deste século. Recuperei o hábito de ir de autocarro, porque voltei a trabalhar no centro de Lisboa, o que me permite ir desfrutando da leitura enquanto não atinjo o meu destino. Lembro-me de estar algures entre o Casal Ventoso e Campolide, enquanto estava a ler este parágrafo de Saramago:
O povo fez-se para viver sujo e esfomeado. Um povo que se lava é um povo que não trabalha, talvez nas cidades, (...) É preciso que este bicho da terra seja bicho mesmo, que de manhã some a remela da noite à remela das noites, que o sujo das mãos, da cara, dos sovacos, das virilhas, dos pés, do buraco do corpo, seja o halo glorioso do trabalho do latifúndio.
Devo ter desviado a atenção por uns breves instantes para o vidro da janela, mas foi o suficiente para me deparar com uma imagem improvável: um maltrapilho, todo sujo, barbudo e cabeludo, a folhear um daqueles jornais de distribuição gratuita. Uma vez que o autocarro em que eu seguia ia a passar rapidamente, não deu para atentar mais, mas pareceu-me que o vagabundo estava a ler o jornal.
Sinal dos tempos, pensei eu, ao contrário, se bem que o ambiente narrativo descrito por Saramago seja no campo e não na cidade, e o nosso maltrapilho, para não dizer sem-abrigo, não trabalhe nem se esforce como as gentes do campo há cem anos, e portanto a sua sujidade seja fingida e imerecida, ao contrário de João Mau-Tempo, personagem do conto de Saramago, não deixa, no entanto, de mostrar o contraste com outros tempos: actualmente toda a gente sabe ler, mesmo um maltrapilho sabe, e toda a gente tem acesso à informação, tal como o nosso maltrapilho no meio da rua. E não é preciso muito esforço para o conseguir, se bem que na cidade exista muito mais possibilidade de um fulano saber mais coisas que no campo. Nada disto estava disponível a João Mau-Tempo, mesmo que tivesse sido pessoa de carne e osso em vez de viver numa folha de papel, há cem anos, em Monte Lavre.
E, por favor, não me venham comentar que a minha visão deste maltrapilho alfacinha é ingénua, porque o que ele se calhar estava mas é deliciar-se com as loiras do Destak do que a ver os preços das casas em Lisboa ou a ver um anúncio de emprego, ou a procurar a barbearia (ou melhor, cabeleireiro de homens, uma vez que os barbeiros já se extinguiram, pelo menos de nome, visto que hoje em dia toda a gente faz a barba em casa) barata mais próxima... muitas possibilidades se colocam ! Mas o que interessa é que pelo menos ele estava a folhear o jornal !